Celina Brod
A Copa do Mundo e os pecados capitais
Por Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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Se não fossem as redes sociais, eu não sentiria a Copa como um dos mundos possíveis. Por aqui não se respira futebol. Não há bandeiras, não há pausa, não há torcida, nem decepção ou alegria. Essa alma coletiva verde e amarela que se esparrama na rotina é um fenômeno nosso, assim como o samba e a bossa nova. Caminho entre a concretude das esquinas geladas e a abstração líquida das mídias e algo reforça uma suspeita: as redes são megafones para falsos problemas. Cada um com o poder de disseminar o que pensa torna-se carpinteiro de significados, moldam sentimentos e, sem esmero, promovem suas picuinhas e crenças. Enquanto isso, os verdadeiros problemas políticos escapam à francesa.
O encosto da politização de tudo viciou o modo das pessoas de experenciar o entorno. Um gol bonito é replicado mil vezes com o formato da letra do nome de um político; as pessoas querem saber em quem o jogador votou para torcer contra ou a favor. Será que conseguiremos quebrar a lógica do conflito? Talvez o sabor do pertencimento seja mais forte e, por isso, mantemos esses hábitos mentais de tribo. Arthur Schopenhauer concluiu que o mundo é o palco onde nossa vontade é representada, isto é, "a vontade tornada objeto". Atualizando o alemão, eu diria que a vontade também é objetivada em algoritmos, vontade como representação digital. Por isso, dizer que as redes enquadram falsos problemas não é o mesmo que dizer que esse comportamento não gera efeitos no mundo físico. As redes recompensam e reforçam a lógica de que o respeito, a assistência mútua e a dignidade devem ser seletivas, bons modos reservados apenas àqueles que fazem parte do meu time, "os escolhidos". A bandeira do Brasil tenta retomar os sentimentos que a fazem ser o que é, um símbolo nacional, não tribal. A Copa parecia ser a situação ideal para essa conscientização.
Mas, no mundo digital como vontade e representação, a Copa deu corpo aos pecados capitais. A ira foi tornada objeto nos xingamentos a Gilberto Gil e à comemoração da lesão de Neymar. A preguiça se materializou nos dias de folga e horas vazias. A gula e a luxúria ficaram visíveis nas imagens dos jogadores e artistas que matavam a fome como realeza. A inveja foi representada por aqueles que se indignaram com a alegria rica, ajuizando sobre o uso do dinheiro alheio. A soberba ganhou vida na sinalização de virtude feita por ideólogos, que exibem uma reparação justiceira ao dizer que torcem apenas para os países colonizados pela Europa. Vícios viciam porque mesmo fazendo mal, geram prazer. Linchar os outros, por exemplo, é um jeito de ganhar importância e poder. Escolha o seu pecado. Eu confesso, estou torcendo para o Brasil por motivos egoístas, quero sentir o calor do meu filho celebrando o hexa, enquanto estou aqui, no frio, na outra ponta da América.
Em inglês existe uma palavra para descrever uma atitude que consideramos moralmente repugnante: "self-rightous". Self-rightous é quem se considera superior à maioria, ao ponto de carregar a certeza de que está sempre do lado certo, sendo rápido em apontar quem merece consideração ou humilhação. O self-rightous tem paixão justiceira que lhe dá um arrogante sentimento de elevação, que o faz crer saber exatamente o que é melhor para os outros. Ele é tão apegado a essa paixão justiceira que a coloca acima da amizade, da gentileza e, paradoxalmente, da própria moral. Porém, o self-rightous não se enxerga assim, é um pecado involuntário, que não faz mal para ele, apenas para quem o rodeia.
Navegando nas águas líquidas das redes, vi alguém postar o seguinte: "sai o gabinete do ódio e entra o gabinete do amor". Mas o amor não é o melhor antagonista para o ódio. Se examinarmos bem, veremos que o oposto do ódio é a indiferença. Para quebrar a lógica do conflito é preciso indiferença, não reafirmar um ódio escondido. A Copa do Mundo é um bom lugar para começar a praticar isso. É simples, basta torcer para o Brasil.
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